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quinta-feira, 29 de abril de 2010

Artigo: O que é de todos...

Estamos no campo das suposições. Em um reinado distante, vasto e razoavelmente desenvolvido, tudo ocorria bem. O rei era um só, amado pelos seus súditos e reconhecido internacionalmente como um chefe de Estado e de governo carismático.
A alta burguesia não era grande, mas estava tão satisfeita. A baixa burguesia era bem maior que a alta e estava um pouco contrariada. Já o povo era composto por muitas pessoas, bem mais que a soma de todos os outros grupos do reinado. Todo esse povo acordava cedo, trabalhava e dormia cedo para poder trabalhar no dia seguinte. Os mais necessitados ganhavam todo o mês uma cesta de alimentos enviada pelo rei.

Continuamos no campo das suposições. Um belo dia aconteceu algo muito estranho nesse reinado. Todos os papéis sumiram. Documentos, livros, jornais. Tudo. Todas as matrizes gráficas e todos os equipamentos para reprodução. Enquanto os órgãos de segurança do reinado tentavam elucidar o mistério o rei começou a ficar aflito e chamou seus ministros.

- Todas as leis sumiram. Precisamos nos organizar e reescrevê-las, pois não quero ser conhecido internacionalmente como “o rei sem lei”.
E os ministros começaram a escrever novamente as leis do reino. Mas a alta burguesia ficou sabendo, se organizou rapidamente e reivindicou participação. Não havia como negar; praticamente todos os serviços do reinado estavam nas mãos deles! O trabalho foi reiniciado e, como agora havia muitos interesses, resolveram organizar uma comissão, que ficou conhecida como “Comissão Real de Estabelecimento da União” ou CREU.

A baixa burguesia ficou sabendo da situação e queria também participar. Era a chance de baixar as taxas e defender seus interesses. Mas ela não conseguia se organizar pois eram muitos interessados na representação e ninguém queria ceder para ninguém. Também a criação do CREU resultou em mais uma taxa real e a baixa burguesia precisou correr atrás de mais um prejuízo. O povo não ficou sabendo de nada. E mesmo que soubessem eram tantos que não saberiam se organizar a tempo para qualquer reivindicação. Finalmente, depois de alguns meses, o CREU finalizou o trabalho que foi apresentado ao rei. Ele considerou que o trabalho estava muito extenso – para que tantas leis? – e sentiu falta de um tópico.

- Onde estão as leis ambientais?
- Leis ambientais? Elas existiam? Perguntou o representante do CREU.
- Não sei se tínhamos, mas todos os reinados desenvolvidos têm e eu não quero ficar para trás.
E o CREU foi novamente convocado. E para este assunto o filho do rei foi nomeado presidente do CREU. Nenhum representante entendia de meio ambiente então resolveram convocar uma reunião com um especialista no assunto. E eles vieram e falaram:
- O reino tem vários problemas relativos ao meio ambiente. Atualmente os mais graves são o das enchentes, desmoronamentos e inundações.
- Mas as enchentes e inundações não são causadas pela chuva? Pergunto o presidente do CREU. Podemos editar uma lei que pare as chuvas?
E todos riram.

O especialista não se abalou com a demonstração de ignorância e continuou.
- A nova lei ambiental deve garantir que a vegetação natural seja mantida ao longo dos cursos de água e das nascentes. Também deve proibir qualquer tipo de edificação em encostas.
- O reino é um vale e temos muitas encostas onde moram os representantes do povo. Os lugares seguros são propriedade do rei. Não podemos alterar isso.
- Então a lei deve proibir que se impermeabilize o solo destes lugares com calçadas e castelos. A água precisa de local para ser absorvida pelo solo antes de chegar aos rios.
Todos os representantes do CREU riram e o príncipe dispensou o especialista. Imaginem modificar as lindas calçadas do reino, famosas no mundo todo!

Outro especialista foi chamado.
- Não podemos utilizar combustível fóssil como base energética, pois é um recurso finito e muito poluente. A lei deve favorecer a pesquisa e o uso de fontes alternativas de energia. Também precisamos limitar o número de carros e garantir acesso ao transporte coletivo.
- Mas logo agora que descobrimos uma imensa fonte de petróleo no subsolo do reino? Não, não podemos fixar esta lei. Também fizemos convênio com indústrias automobilísticas que trarão muitas fábricas para nossas terras. E assim foi. Vários especialistas se pronunciaram, mas em vão. Nem uma única lei foi escrita. Precisavam comunicar o rei. Ele era um sábio e poderia dar uma solução.

O rei ouviu os relatos em silêncio. Estava preocupado. O grande banquete anual para todos os monarcas importantes do planeta seria no dia seguinte e ele havia preparado um belo discurso sobre as novas leis de seu reinado. E no texto a questão ambiental era fundamental. Ele dispensou a CREU e ficou o resto do dia meditando. No dia seguinte pela manhã as leis estavam completas e modernas. A lei ambiental tinha apenas um artigo! O próprio rei escreveu antes de embarcar para o encontro global. E naquela mesma noite, perante os soberanos mais importantes da Terra o rei pronunciou seu discurso e sua lei ambiental: “O meio ambiente é de todos e cabe a todos o dever de zelar por ele”. E foi aplaudido de pé. Porque todos os demais reis sábios presentes sabem que o que é de todos não é de ninguém. Por isso eles eram os reis. (Texto inspirado na obra “O que é a Constituição” de Ferdinand Lassale: e-book em http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/constituicaol.html).


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