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domingo, 17 de outubro de 2010

Artigo: Estado de Direito e equilíbrio ambiental


No início de setembro de 2010 participei de um encontro em Lima, Peru, sob o título Latin America and the Caribbean Rule of Law Conference, promovido por uma entidade chamada World Justice Project, sediada em Washington, EUA. Outros encontros semelhantes já houve em diferentes continentes, tendo como eixo o Estado de Direito como pressuposto para o desenvolvimento, a democracia e a qualidade de vida dos mais diferentes povos.

Iniciativa de pessoas ligadas à área jurídica, a referida entidade abre-se numa proposta de trabalho multidisciplinar, tendo sido convidadas 100 pessoas de variada formação e atividade, procedentes dos diversos países da América Latina e do Caribe. A idéia-matriz é que o Estado de Direito interessa a toda a sociedade, não sendo, pois, atributo exclusivo de juristas, juízes, advogados, promotores, procuradores.

Assim, na qualidade de jornalista fui convidado, igualmente como outros colegas da região. O painel de que participei se propôs a discutir um “Balancing Economic Development and the Environment”, numa tradução livre, “equilíbrio entre desenvolvimento econômico e o meio ambiente”.

Além do tema sabidamente amplo e complexo, cabia a mim falar, durante 10 minutos, como alguém que vive na Amazônia, região forçosamente presente em qualquer debate ambiental mundo afora.

O grande desafio foi abordar a complexa questão da preservação e conservação da natureza na região amazônica diante das urgentes necessidades dos grupos humanos que aí vivem, especificamente daqueles grupos não urbanos, que permanecem com modos de vida próximos a seus antepassados. E que, por serem os primeiros habitantes da região, têm direitos historicamente adquiridos sobre os recursos que lhes permitem sobreviver e sobre as suas culturas, hoje interagindo com as novas tecnologias de inserção global.

Como realizar essa abordagem, ao mesmo tempo, num país como o Brasil, que hoje realiza esforços para superar as heranças passadas de subdesenvolvimento – obedecendo a regras utilizadas pelos países que há muito tempo superaram a pobreza extrema – a fim de posicionar-se no âmbito das nações desenvolvidas?

Desconexão sistêmica

Uma questão importante a ressaltar está na origem dos discursos hegemônicos sobre meio ambiente. Organizações acadêmicas e universitárias, sobretudo dos Estados Unidos e da Europa, acentuam os problemas da globalidade e da governabilidade vistos a partir desses países “pós-industriais”.

Para o sociólogo crítico mexicano, Pablo González Casanova, condecorado em 2003 pela Unesco por sua defesa em favor da identidade latino-americana, esses problemas são atribuídos, com linguagens que parecem científicas, àquilo que o autor chama de fundamentalismos do Sul e a seus nacionalismos, etnicismos primitivos, a seu moral baixo e a sua cultura cívica, ao autoritarismo e à corrupção dos dirigentes, e a uma certa inferioridade cultural e racial que os habitantes do Sul não conseguiriam superar.

Ao mesmo tempo, a pobreza nesses países não é conectada às questões ambientais, ficando, assim, descartado o estudo científico da exploração de uma região por outra, menos ainda a exploração interna nos países do Sul. Essa visão torna-se presente em trabalhos científicos que Casanova considera “dissidentes”. Dessa perspectiva, “a pobreza, como fenômeno sistêmico, nada tem a ver com um fenômeno que não existe, como a exploração”, afirma Casanova, em seu livro “O colonialismo global e a democracia, traduzido para o português em 1995, pela Civilização Brasileira.

Na atualidade, pessoas ou grupos com interpretação diferente tentam, com muita dificuldade, se não com a impossibilidade de associar, por exemplo, as questões relativas ao desenvolvimento sustentável e à biodiversidade com a relação de sistêmica desigualdade Norte-Sul.

Nesse descompasso discursivo, assistimos às mais proeminentes organizações não governamentais, entidades internacionais e multilaterais enfatizarem questões como o aquecimento global, quando nós, sobretudo em regiões como a Amazônia e o Nordeste brasileiros, precisamos colocar as coisas em outra ordem: primeiro, a pobreza e a desigualdade, depois o meio ambiente. No horizonte, as duas questões formando uma só realidade, ou seja, não haverá justiça social nem desenvolvimento com uma massa de pobres sem perspectiva de futuro, nem haverá meio ambiente sadio e preservado com uma massa humana nessas condições.

É esse enlace entre pobreza e meio ambiente, é essa forma básica de análise que me parece, se não ausente, mas muito tênue nos discursos de muitos ambientalistas brasileiros,
alguns deles mais afinados com idéias provindas dos países centrais, de “salvação do Planeta” do que, antes de tudo, e ao mesmo tempo, de eliminação da pobreza e o estabelecimento do Estado de Direito em todos os recantos do território nacional, como condições básicas para proteger e bem utilizar os recursos da natureza.

Desenvolvimento e meio ambiente

Ao mesmo tempo, neste momento, no Brasil, o ícone dessa dualidade talvez seja o projeto de construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, um dos maiores da Amazônia. Em outras partes da região também há uma corrida febril na busca de produzir energia hidrelétrica.

De um lado, as populações tradicionais, assessoradas por poderosa rede de ONGs, visceralmente opostas a tais projetos, organizando variadas formas de luta sob o argumento de que essas mega-usinas vão alterar profundamente o ambiente físico e sócio-cultural, deixando na incerteza o futuro desses grupos. De outro lado, o avanço do capital no País exige mais e mais energia elétrica não propriamente para a região amazônica, mas para os parques fabris das regiões desenvolvidas do Brasil.

É evidente que hoje já não se cometem erros ambientais na magnitude como foram cometidos em décadas passadas na construção dessas gigantescas produtoras de energia, de alumínio, ferro e outros bens de que a Amazônia é rica.
Hoje existem leis em profusão, e os órgãos oficiais de meio ambiente promovem estudos prévios de impactos ambientais, em relatórios quase sempre contestados pelos oponentes desses projetos.

A questão é que os erros do passado levaram ao crescimento de uma consciência segundo a qual usinas hidrelétricas não são mais necessárias, que há outras formas de suprir o país de eletricidade, formas estas que, na análise dos grupos oponentes, não interessam ao capital tanto brasileiro como estrangeiro, sócio nesses projetos.

Medidas oficiais

De que forma o papel dos agentes públicos é importante para a proteção do Estado de Direito quando tratam do equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e o meio ambiente?

Podemos citar um recente exemplo positivo: O Conselho Nacional de Justiça determinou o cancelamento de 5.500 registros de terras no Pará, o Estado mais populoso da Amazônia. Trata-se de títulos cronicamente irregulares ou suspeitos de ilegalidade. O tribunal de justiça local havia negado esse cancelamento, motivando assim a intervenção de órgão federal.

Para se ter uma idéia, essas áreas canceladas equivalem a cerca de 80% da superfície do Estado do Pará, de mais de 1 milhão e 200 quilômetros quadrados. Não é novidade que, além da pobreza endêmica, a desordem fundiária está na raiz da devastação ambiental, sendo justamente no Estado do Pará onde mais se concentrou o avanço do capital sobre a natureza nos últimos 40 anos.

Ao mesmo tempo, cumpre informar que, localizado na Amazônia oriental, o Pará é o Estado da federação brasileira onde se situa o maior corredor de florestas protegidas do mundo, com mais de 717 mil km² (cerca de 71 milhões de hectares) divididos em áreas de proteção integral, de uso sustentável e terras indígenas, de acordo com dados da Secretaria de Estado de Meio Ambiente.

Se questão de fundo está no império da lei, resta aos brasileiros decidirem, como povo e como instituições, o que o Brasil entende por Amazônia. E assim fazendo, pelo conhecimento, assumir se deseja possuí-la ou deixá-la permanecer no perigoso limbo dos discursos cuja matriz sequer são gestadas no território brasileiro.

*Manuel Dutra é professor no curso de Jornalismo da Universidade da Amazônia e integrante do Comitê Consultivo da Rede Ethos de Jornalistas.

Artigo publicado originalmente no site Ethos

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