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sábado, 19 de fevereiro de 2011

O estigma do lucro e as ações de RSE

Duas pesquisas revelam uma contradição que perturba o ambiente de negócios no Brasil. Trata-se do fosso de percepções entre as expectativas que a população, de um lado, e os empresários e executivos, do outro, alimentam em relação às empresas. Questionados sobre qual a missão de uma companhia privada, 93% dos brasileiros mencionaram a geração de empregos - o item mais citado de uma sondagem conduzida pelo instituto Vox Populi. O item menos citado, por apenas 10%, foi o lucro. Já os presidentes de empresas ouvidos citaram o lucro em primeiro lugar, com 82% das menções.

Entre economistas e acadêmicos, ninguém tem dúvida de que a maior missão de uma empresa é ser lucrativa. Sem lucro, não há geração de riqueza, crescimento, emprego, justiça social - não há, em suma, nada que justifique a existência das empresas. Mas o lucro está tão estigmatizado, tão satanizado na sociedade que os próprios empresários - embora, no íntimo, reconheçam sua importância - tomam cuidado, em público, para não defendê-lo com entusiasmo. Comportam-se como se tivessem vergonha, pudor ou sentimento de culpa pelo próprio sucesso. E o fazem por instinto de sobrevivência. Não se trata aqui da sobrevivência pessoal, ligada ao medo de seqüestro. Ele existe, mas não conta muito nesse caso. No mundo dos negócios brasileiro, quem festeja o lucro corre o risco de ser alvo de uma CPI, de receber uma visita inesperada da Receita Federal ou mesmo de ficar com a imagem arranhada perante a opinião pública. "Os brasileiros habituaram-se a ver no capitalismo um mal, responsável pela diferença de classes sociais. E a ver, no lucro, um mal necessário", afirma Paulo Zottolo, presidente no Brasil da alemã Nivea.

Quando a sociedade passa a esperar que as empresas se preocupem prioritariamente com a geração de empregos e os trabalhos sociais, como meta número 1, algo está errado. Um levantamento do Instituto Ipsos verificou que os consumidores são propensos a recomendar a um amigo a aquisição de produtos e serviços de empresas que apóiam projetos educacionais, sociais e artísticos, investem em esportes e exigem comportamento socialmente responsável de seus fornecedores - todas ações desejáveis, porém longe de ser consideradas uma obrigação das companhias. A pesquisa do Ipsos, no entanto, mostra que os consumidores não se sensibilizam quando sabem que o fabricante do produto ou prestador de serviço cumpre à risca as obrigações legais, tais como respeitar as leis trabalhistas, pagar todos os impostos em dia e não oferecer propina ou vantagens indevidas. O papel social da empresa ganhou mais importância que o econômico. Em razão dessa realidade, os empresários acabam muitas vezes adotando uma postura tímida ao defender o papel das companhias que dirigem. Invariavelmente, sentem-se mais confortáveis discorrendo sobre projetos sociais do que sobre os projetos econômicos do negócio. Eis o que dizem os presidentes de algumas das maiores empresas do Brasil e do mundo:

- A missão de uma empresa é criar valor para a sociedade. Só com essa visão ela tem chance de se perpetuar e remunerar melhor seus acionistas -, diz Guilherme Peirão Leal, da Natura.

- O lucro, na verdade, é uma noção não de acumulação, mas de distribuição -, diz José Carlos Grubisich, da Braskem.

- Não é mais admissível buscar o lucro a qualquer custo, é preciso respeitar conceitos como sustentabilidade do planeta e ter preocupação com valores universais -, diz Márcio Cypriano, do Bradesco.

- As empresas não têm de escolher entre lucros e princípios. O sucesso econômico de longo prazo depende de melhorias no nosso desempenho financeiro, ambiental e social -, diz Jeroen van der Veer, CEO mundial da Shell.

Rigorosamente, nenhum desses comandantes de empresas de primeira linha está errado. Nos últimos anos, um avassalador movimento de resposta às demandas sociais tomou conta do mundo empresarial. Há cinco anos, EXAME edita o Guia de Boa Cidadania Corporativa, no qual as melhores práticas nesse campo são premiadas. Dele participaram, na primeira edição, duas centenas de companhias, que submeteram 500 projetos sociais. Foram 1 200 na edição do ano anterior. O desempenho dos papéis das empresas comprometidas com os conceitos de boa cidadania - aferidos pela própria Dow Jones - tem sido consistentemente superior ao das demais. "Empresa engajada em princípios e valores sociais não pode mais sair dessa", afirma Rosa Maria Fischer, presidente do Centro de Empreendedorismo Social e Administração em Terceiro Setor (Ceats). O Ipea traçou, em 2000, o primeiro retrato dos investimentos sociais das companhias brasileiras. Juntas, 59% delas gastaram, no final da década passada, 4,7 bilhões de reais em projetos sociais.

Diferentes razões são apontadas para justificar tais gastos. Sabe-se que muitos empresários vislumbram na onda da responsabilidade social uma oportunidade de conferir brilho às suas marcas e de tornar suas companhias mais eficientes na retenção de talentos. As empresas também sentem necessidade de se relacionar mais intensamente com o consumidor, em vez de apenas anunciar e vender produtos. "Não dá para dizer que nossos produtos obtêm diferenciação apenas pela sua formulação e pelo desempenho que oferecem aos consumidores", diz Leal, da Natura. "São todos commodities, e as prateleiras do mundo estão lotadas delas". Em seu balanço social, a Natura relata, por exemplo, as ações nas comunidades extrativistas da Região Norte, de onde vêm as essências dos produtos da linha Ekos. É do conjunto de valores embebidos na marca, que abrange o compromisso com a sustentabilidade ambiental e social, que, segundo Leal, a Natura extrai vantagens competitivas. "É um trunfo forte deles e um problema para nós", reconhece Zottolo, da Nivea, concorrente frontal da Natura.

Adeptos dos princípios da cidadania corporativa identificam um círculo virtuoso que se estabelece estrategicamente na empresa a partir de sua implantação, o que contribui para aumentar o próprio lucro. O Real ABN Amro treinou 2000 analistas de crédito que, a cada ano, submetem cerca de 4000 empresas ao crivo das análises socioambientais. "As que recebem melhor avaliação são, invariavelmente, as responsáveis pelos menores índices de inadimplência para o banco", diz o presidente do banco, Fábio Barbosa. Em 2004, 27 empresas foram rejeitadas como clientes. Segundo Barbosa, clientes com pendências nos órgãos de fiscalização ambiental são orientados a desembaraçá-las se quiserem continuar recebendo crédito. Não há como negar os avanços nas práticas das companhias nem como deixar de aplaudi-las, sempre que o mercado for responsável por eles. Quando o consumidor exige práticas ambientais saudáveis - comprando, por exemplo, apenas madeira certificada -, é natural que as empresas que seguem essas práticas sejam as mais lucrativas. Esse é, portanto, um recado que o mercado costuma dar por meio do lucro.

Mas a subordinação sistemática desse lucro a variáveis ambientais ou sociais acarreta riscos. O primeiro - e maior deles - está na perigosa confusão de papéis entre Estado e empresa. É cômodo para um governo falido empurrar na direção das empresas tarefas que são de sua responsabilidade. "À medida que o Estado falha tão seriamente, as empresas são estimuladas a fazer o que ele deixa de fazer", diz o economista Eduardo Giannetti da Fonseca. O grande problema é que a sociedade acaba pagando em dobro. Paga impostos a um governo que não cumpre seu papel. E também paga por meio do custo adicional das empresas - que pode simplesmente reduzir o lucro, sua real contribuição econômica. "Uma praça deveria ser conservada pela prefeitura", diz José Tadeu Alves, presidente no Brasil da Merck, Sharp & Dohme. "Se uma empresa gasta dinheiro para conservá-la, só para depois poder colocar uma plaquinha com propaganda, então todos saímos perdendo". A situação é semelhante à do assalariado que vê descontado todo mês no holerite a contribuição ao INSS e ainda tem de gastar com plano de saúde, pois a assistência médica provida pelo Estado é precária. Na conta final, o país paga duas vezes. "Esses efeitos adversos no desempenho das empresas tornam todos mais pobres", diz o economista britânico David Henderson, da Universidade de Westminster, autor do livro Misguided Virtue, uma crítica à atual onda de responsabilidade social corporativa.

Um segundo risco, este para as próprias empresas, está na progressiva adoção de normas e padrões de responsabilidade social para avaliar seu desempenho, além das medidas contábeis tradicionais - como lucro, faturamento e rentabilidade. "A adoção de normas e padrões mais uniformes não constitui necessariamente um progresso", diz Henderson. O Instituto Ethos, fundado em 1998, adaptou ao Brasil dezenas de parâmetros difundidos pela americana Business for Social Responsability - ou negócios pela responsabilidade social. "Temos cerca de 1000 empresas filiadas", diz o presidente do Ethos, Oded Grajew. Se a maioria segue ou não os princípios que pregam excelência no relacionamento com consumidores, funcionários, fornecedores e as comunidades, não se sabe, pois nenhuma é auditada. O Brasil também é um dos países que aderiram ao Pacto Global - um conjunto de dez princípios formulados pela ONU que vão dos direitos dos funcionários à conduta ética dos gestores, passando pelos impactos social e ambiental. Assim como ocorreu com o movimento da qualidade, nos anos 80, começou a ser criada mais uma norma ISO - sigla, em inglês, da Organização Internacional de Normalização -, que visa estabelecer um padrão internacional para a gestão socialmente responsável. À frente do comitê para a formulação da ISO 26000, como será batizada a nova norma, foi nomeado pela primeira vez um brasileiro, o executivo Jorge Cajazeira, do grupo Suzano. Ele prevê ao menos cinco anos de discussão antes que a norma passe a vigorar. "Falta consenso sobre uma série de questões", afirma.

Há também um crescente movimento para que as empresas adotem os balanços sociais, em que prestam contas não apenas numa única linha - a de lucro ao acionista -, mas em três linhas - econômica, ambiental e social, para todos os stakeholders, termo em inglês usado para definir todos os afetados pelos negócios da empresa. Outro estudo do Ipea expôs a ausência de consenso sobre como fazer isso. Algumas empresas são contrárias à publicação do balanço social, afirmando que já cumprem sua função ao pagar impostos, obedecer à legislação trabalhista e ainda ao fornecer benefícios adicionais, como planos de saúde e de previdência. Outras temem que, tornado obrigatório, qualquer descontinuidade na publicação do balanço social possa ser punida pelo mercado. Há ainda aquelas para as quais ele pode carregar informações estratégicas, que beneficiariam a concorrência. "Número considerável de empresas entende que somente o Estado é responsável pelas ações no âmbito social", diz o estudo do Ipea. "Às empresas caberiam as atividades-padrão de gerar empregos e lucros e pagar impostos".

A verdadeira questão, porém, é que não há como medir o benefício das ações sociais para a empresa. Ao contrário do lucro, resultado de uma simples conta de subtração, as demais medidas estão longe de ser consensuais. Como conhecer o "risco ambiental" associado a uma empresa? Ou se ela administra algo tão imponderável como a "justiça social"? Como saber o retorno de imagem gerado por tudo isso? "Não conseguimos fazer uma aferição objetiva", afirma Milton Seligman, diretor corporativo da Ambev. "Tentamos desenvolver uma metodologia para medir o retorno e, no futuro, todo programa apoiado pela Fundação Itaú Social terá de apresentá-la", diz Roberto Setubal, presidente do Itaú. Nenhuma empresa consultada conseguiu, porém, apresentar métodos para avaliar esse retorno de modo tão preciso quanto um balanço contábil. As tentativas de medida normalmente vêm de ONGs, como o Ethos, que, como representantes de grupos de interesses, têm todo o direito de advogar sua visão de como as empresas deveriam se comportar, mas não têm a legitimidade política necessária numa democracia para estabelecer quaisquer regras. Para garantir que a empresa respeite o ambiente ou contribua para a justiça social, o caminho é aprovar leis no Congresso relativas a esses assuntos - como as que já existem. Garantir o cumprimento delas é o papel do Estado. O papel da empresa é obter o maior lucro possível - respeitando as leis. "Sem cumprir o mínimo legal, é estranho que as empresas se preocupem com o máximo moral", diz Giannetti da Fonseca.

É bem possível - e, em muitos casos, até provável - que empresas que se preocupam com o ambiente e a comunidade acabem se tornando mais lucrativas. Mas não há uma relação necessária de causa e efeito entre os dois fatos. A Levis, por exemplo, foi dirigida nos anos 90 pelo herdeiro Robert Haas, que declarava a todos os ventos que uma companhia guiada por valores sociais exibia uma performance superior à daquelas motivadas apenas pelo lucro. O resultado foi uma gestão desastrosa, o que levou a revista americana Fortune a estampar na sua capa uma foto de Haas ao lado do título "Como a Levis jogou no lixo uma grande marca americana". Alguns estudiosos chamam a atenção para um dilema. Se o dinheiro investido em projetos sociais sai da linha de custo das companhias, ele reduz o lucro do acionista. Se é adicionado ao preço dos produtos, encarece a vida do consumidor. No Brasil, há ainda uma terceira alternativa, quando o projeto é financiado com incentivos fiscais. Não se deve tratar da questão como um dogma, mas a sociedade muitas vezes não sabe de onde vem o dinheiro.

Uma solução americana para quem quer destinar dinheiro a causas nobres, adotada por bilionários como Warren Buffett ou Bill Gates, é estimular doações dos acionistas como pessoas físicas - o que não tem efeito sobre o lucro. No Brasil, esse é o caso do Bradesco. O maior acionista do banco, com um quarto do capital, é a Fundação Bradesco, que investiu, em 2004, 157 milhões de reais em projetos sociais, sobretudo na área de educação. "É interesse da fundação que o banco tenha o maior lucro possível, diz José Luiz Acar Pedro, vice-presidente executivo do Bradesco.

Há ainda um terceiro risco para as empresas se a preocupação social atingir um patamar elevado demais. Muitas companhias já se comportam como verdadeiros estados burocráticos e paternalistas com funcionários ou fornecedores. Por meio da adoção de um número exagerado de normas sociais ou ambientais, elas podem ganhar mais burocracia e mais custos, para um resultado difícil de medir. "O perigo é que, em nome de objetivos questionáveis, como a ecoeficiência ou a justiça social, os negócios acabem eles mesmos regulando excessivamente a vida econômica", afirma o economista Henderson. As próprias empresas podem ter interesse de que normas ambientais ou sociais sejam adotadas por todas as demais, para não ficar em desvantagem competitiva. Pouco tempo atrás, o CEO da mineradora australiana WMC Ltd., Hugh Morgan, afirmou ter ouvido do presidente de outra empresa a seguinte frase: "Hugh, você ainda não entendeu? Minha organização é dirigida pelo Greenpeace agora, e meu trabalho é garantir que eles dirijam a sua amanhã". Como estratégia de marketing ou apenas para aliviar a consciência, as companhias correm o risco de tornar-se menos competitivas e de acabar, no futuro, formalmente responsabilizadas por atividades na esfera do Estado. É esse o risco do exagero. Claro que não deixa de ser cômodo, para certas companhias, embelezar a imagem por meio de ações sociais ou culturais. De acordo com uma pesquisa recente, cerca de 90% das ações sociais estão alocadas no departamento de marketing. Só que nenhum departamento de marketing está preparado para assumir atividades específicas do Estado - como educação, saúde ou segurança. Há aí um claro problema de vocação. Eis o que afirma Setubal, do Itaú, um dos maiores defensores da ação social das empresas: "A proposta das empresas não é substituir o Estado. Ele sempre será responsável e jamais será diferente. As empresas farão sua parte, na medida do possível".

Quando uma atividade social interessa à própria empresa e contribui, em alguma medida, para a sua lucratividade, ela diz respeito à sua vocação. Há, porém, atividades necessárias que não são vocação de empresas. Desde atender portadores de hanseníase até cuidar de temas sensíveis, como prostituição infantil ou abuso sexual na infância. Qual empresa, com exceção de hospitais ou congêneres, vai querer associar sua imagem a isso? Há aí, portanto, um risco potencial para os próprios necessitados da ação social. Normalmente, onde o Estado falhava, esse tipo de necessidade era suprido por entidades filantrópicas, à custa de doações individuais e voluntárias. "Agora, esse dinheiro está sendo drenado pelas verbas das empresas destinadas à reponsabilidade social", diz o administrador Stephen Kanitz, colunista de Veja e criador do Prêmio Bem-Eficiente, que avalia as entidades filantrópicas. Pouco tempo atrás, Kanitz procurou mais de 40 empresas para apresentar um projeto de proteção a menores vítimas de abuso sexual, problema que, segundo ele, afeta cerca de 3 milhões de crianças brasileiras. Nenhuma quis ver seu nome associado à causa. Acabou encontrando apenas dois empresários que aceitaram, como pessoas físicas, doar ao projeto parte do lucro que ganharam como acionistas de uma grande empresa de construção civil e de um grande negócio de internet, desde que seus nomes não fossem divulgados.

(matéria publicada em 2005 no site http://www.administradores.com.br/, porém bem atual)

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